Andei nos últimos tempos me permitindo. E para mim, criada em meio aos rigores de uma família de pensamento conservador- no mais amplo sentido da palavra – significa me descobrir. Não que eu tenha saído por aí desvairada, provando o mundo de uma só vez. É que por aqui, em casa e em mim, cada passo adiante é um rompimento.
Há quem diga que vivi muito
precocemente, que acabei por envelhecer – de alma mesmo-, muito cedo. Por hora
eu tendo a discordar. Acho que vivo muito tardiamente. Não falo das
responsabilidades da vida, talvez essas tenham me vindo deveras muito cedo. Falo
dessa fatia confusa, desapegada e conflituosa, mas inegavelmente bonita e
necessária da vida.
Desde lá sou um amontoado de
questionamentos e comparações. Interpretar o mundo e as pessoas sempre foi um
hobby, poucas coisas me fazem mais satisfeita que sentar num banco qualquer de
uma praça e me encantar com as simplicidades estampadas em cada canto, em cada
gente. Interpretar a mim é que tem sido o grande aprendizado, e a cada dia, isto
de me conhecer, exige um esforço maior da minha mente tão cheia de pensamentos
dispersos.
Hoje, num domingo de molho – do
trabalho e da luta- e depois de um mês tão notadamente marcado por essa ambiguidade
que me acompanha, eu olho para trás e tenho as mesmas dúvidas de ontem, e os
mesmos questionamentos me rondam, e eu continuo a viver, e a buscar avidamente
os tons vibrantes de fim de tarde e os sons que ecoam no interior ruidoso do
meu sentir. Parece-me então, que a minha
teimosia sempre vence. Eu não desisto de olhar para o mundo em busca de mim, e
de olhar para mim refletindo o mundo que quero viver por inteiro, em passo
cadenciado e olhar curioso. Quantos goles de vida ainda hei de sorver!
Sabe, quando lia, só vinha na memória Tabacaria, de Álvaro de Campos... talvez ele dissesse disso que você escreveu, isso aí:
ResponderExcluir"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[...]
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
[...]
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.”
Parece que você achou sua metafísica. A metafísica que Alberto Caeiro encontrou no seu guardar rebanhos. A metafísica que existe em não pensar em nada, como fala no Guardador de Rebanhos. A metafísica que existe em deixar a tabacaria, a sua tabacaria, coisa grande das coisas de fora, que fica do outro lado da rua, da sua rua, aí em você, rua, caminhos desmedidos e postes de luz queimada e sombrios e luzes acesas e coerentes e cantos escuros e cantos claros de metafísica que promove a reinvenção das coisas que existem e que não existem num texto sem parada e sem respiro pra tudo que acontece em torno em ti, que são as coisas grandes e reais de dentro e livres e que buscas avidamente de tanto que queres beber do mundo teu e não teu de todos. Porque a vida, a vida, a vida é muito grande, é muito cheia. E existe muito mais que uma tabacaria. E a tabacaria não pode prender espíritos grandes.
“O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.”
Como diz o Caeiro, parece que você achou sua metafísica, baby. Porquê você não pensa só, você sente, você vive. Você encontrou seu Deus. E você, vivendo como vive, encontra ele a toda hora e a todo instante, vivendo como vive.
“Não acredito em Deus porque nunca o vi.
[...]
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.”
E dentre as missas que você vive, das coisas do Deus que é teu e que você vê, e que sente Deus, há um poetinha que canta um trecho, que às vezes não se ouve, mas que está lá... “...somos nós, é nossa voz ... reúne futuro e tradição ... é união ... somos nós ... mocidade brasileira, nosso hino é nossa bandeira ... classe estudantil, sempre na vanguarda a trabalhar ...”. E isso é o que liberta, a cada passo. É tudo o que faz feliz. E essa é uma parte da missa que você vive, quando você olha pra seu Deus e pensa nele belo, e pensa em si mesma, com o Menino Jesus de si mesma nos braços, pra no final do dia fazer que ”depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa”.
“Andei nos últimos tempos me permitindo. E para mim, criada em meio aos rigores de uma família de pensamento conservador- no mais amplo sentido da palavra – significa me descobrir. Não que eu tenha saído por aí desvairada, provando o mundo de uma só vez. É que por aqui, em casa e em mim, cada passo adiante é um rompimento.”
Você, hoje, tem uma missa constante dentro de si. E ela te leva pra onde você nem pode sonhar que vai levar.
Amém.